“Ainda estou aqui” ou por que o Brasil já ganhou muito mais que um Oscar

Estamos acompanhando emocionados a repercussão de “Ainda estou aqui”. O filme de Walter Salles, lançado em 7 de novembro nos cinemas brasileiros, continua a encher salas e salas de cinema país afora, além da belíssima recepção que teve no exterior. Do dia que escrevo esse texto, já são 5 milhões de espectadores brasileiros. Quando eu fui assistir, a sala estava lotada. Quando amigos foram assistir, a sala estava lotada. Quando minha mãe foi assistir (metade de fevereiro), a sala estava lotada. O filme é um fenômeno e conseguiu furar a bolha cinéfila desde o seu lançamento.
Ao acessar outros grupos, principalmente àqueles que diziam que cinema brasileiro é ruim, nós vencemos. A Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), da qual faço parte, também o escolheu como Melhor Longa-metragem Brasileiro de 2024 [1]. Estamos falando de um filme que recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais importantes, além da indicação ao Oscar em três categorias, o que impulsionou o número de espectadores. O Oscar, importante frisar, é uma cerimônia estadunidense de premiação anual que tem por prioridade valorizar as obras e profissionais da indústria daquele país, e não deve ser considerada parâmetro para qualidade para o que produzimos no Brasil, na América Latina ou em outras partes do globo. O neocolonialismo e epistemicídio imperialista ainda é cultuado por muitos, algo que Paulo Emílio Salles Gomes, um dos maiores defensores do cinema nacional que já tivemos, não nos deixa esquecer [2]. Ainda assim, sabemos como o Oscar é vitrine para o mundo e se os brasileiros estão assistindo filme nacional por conta dessa relação, ela também merece ser reconhecida.
“Ainda estou aqui” é filme do ano por conta de sua protagonista, que é a própria força da natureza. É o filme do ano porque acessou grandes e diversificadas audiências, promovendo reflexão, pensamento, lembrança, identificação, debate. É o filme do ano porque soube ser contemporâneo do seu tempo, para usar as palavras de Giorgio Agamben. Ao colocar o nosso tempo em relação aos outros tempos, lendo de modo singular a história, reconhece uma necessidade consciente à qual não se pode responder [3]. E essa necessidade ressoa inevitavelmente no Brasil atual, cuja democracia segue se apresentando frágil e nos deixa incrédulos diante da barbárie. - “Não é um filme sobre o passado”, mencionou Salles em entrevista para a Variety [4]. Por tratar do agora, a dor da ausência de Rubens Paiva (Selton Mello) ressoou em tantos espectadores de modo muito íntimo. Não esqueço de como o filme foi apreendido por um amigo professor universitário, cuja identificação o levou a escrever um texto traçando paralelos sobre como nossa democracia esteve absolutamente por um fio após as tentativas de golpe ocorridas em 08 de janeiro de 2023, um dos maiores ataques às liberdades democráticas e às instituições, desde o fim da ditadura civil-militar no Brasil.
Salles não quis seguir pela via do sofrimento de quando uma injustiça é ocorrida, ainda que fosse inevitável, nem tampouco tornar desolador a experiência de representar este que foi um dos momentos mais horripilantes e vergonhosos que tivemos na História Brasileira. Ao falar de luto e de perda de direitos constitucionais, fala também de superação, e é a personagem de Eunice Paiva (Fernanda Torres) quem parece segurar forte a nossa mão por tantos momentos desse filme, conduzindo-nos numa espécie de busca insidiosa por esperança e justiça. A ausência foi lidada de modo comedido, está muito mais no não-dito que no dito. Por isso que anos depois, após esforço exaustivo de Eunice em restabelecer sua família, uma conversa de dois dos filhos, já adultos, nos chega de forma golpeante: - “Quando foi que você enterrou o papai?”. Responderam que foi desde que foram embora da casa do Rio de Janeiro e desde que viram a mãe doando suas roupas.

No primeiro ato, o foco recai em Rubens, e nos apresenta de modo solar o cotidiano da casa enorme no Rio de Janeiro em que viviam os Paiva. É um ponto forte aqui direção de arte, bem-sucedida em nos trazer a sensação de como seria viver na década de 1970, cuja identidade visual é marcada por vinis de MPB, crianças circulando, visitas sendo recebidas, jantares sendo oferecidos, fotos de família por todos os lados, festas, danças e conversas instigantes. As filmagens em Super 8, câmera que a primogênita do casal, Vera (Valentina Herzage), carrega para cima e para baixo, tem peso maior do que o mero registro, traz importância narrativa para salvaguardar a memória de Rubens, conforme vamos acompanhando nos outros atos. Os rolos de filmes de 15 metros garantiam gravação de cerca de três minutos, e como era comum ao período, as imagens eram posteriormente exibidas em um telão, sem necessidade de revelação (filme reversível). A narrativa assimila a proposta expondo o formato Super 8 no nível da forma, acrescentando as bordas que lhe são características, ao inserir as imagens de Rubens em momentos felizes com sua família. A mesma câmera na mão, que Vera segura dentro do carro quando saia com seus amigos, estaria presente na abordagem dos militares no trânsito, apresentando a violência que viviam as pessoas durante a ditadura civil-militar.
De repente, Rubens é forçadamente retirado de sua casa por seis homens para um interrogatório. A cena do personagem sorrindo para sua esposa, já na rua em frente à sua casa, expressou algo como: “tudo vai ficar bem, já retorno”. Mas não retornaria nunca mais. A presença dos homens na casa é destacada pelo ponto de vista da iluminação, que passa a ser escura e traz consigo uma ambiência sufocante, claustrofóbica, dadas cortinas fechadas e sensação constante de impotência e medo pelo que está por vir. Cabe lembrar o grande mestre do terror, José Mojica Marins, que uma vez mencionou em entrevista que “terror é não saber o amanhã”[5]. A ambiência solar do primeiro ato então se dissipa à nulidade. Salles, contudo, não quis seguir pela via do sofrimento, conforme já mencionado. Desse momento em diante, ganha força a grande protagonista dessa história, Eunice, cuja performance de Fernanda Torres fez jus à incrível história de vida dessa mulher.
Décadas depois, já formada em Direito, Eunice defenderia que o Estado tem a obrigação de compensar as famílias afetadas pelo regime e garantir que os responsáveis pelos atos criminosos sejam julgados. O filme estreou no ano que marca os 60 anos do golpe de 1964. Salles, trabalhando cinematograficamente com discursos em favor da memória dos crimes da ditadura, quis se dirigir, nessa hora, para cada espectador(a). Aqui não deixo de reconhecer a figura contraditória que é o próprio diretor, cujo filme também pode ser lido à luz dessas inconsistências [6]. Todavia, considerando as reações passionais que observo do público, o filme é expressivo em reforçar a impossibilidade de se reconciliar com o passado, ou ignorar sua existência. Estamos, afinal, falando de um país que não lida com seu passado ditatorial, nem reconhece a memória das vítimas de crimes contra a humanidade, muitos ainda desaparecidos. Em vez de varrer a história para baixo do tapete, devemos escová-la a contrapelo [7], como nos ensinou Walter Benjamin, olhando para o passado pela perspectiva dos vencidos, dos desaparecidos, dos esquecidos, dos apagados.
É também possível aprender a lidar com o passado junto aos historiadores alemães, que costumam apontar como via de enfrentamento aos traumas do nazismo naquele país o conceito de Vergangenheitsbewältigung, uma espécie de debate público alemão sobre um período problemático de sua história recente. Ou ainda, mais próximo de nós, com nossos hermanos argentinos, cujo Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça é rememorado todo 24 de março, numa data dedicada à lembrança das vítimas da repressão com forte presença do movimento das Mães e Avós da Praça de Maio. Nesse sentido, a contemporaneidade de “Ainda estou aqui”, filme que entrou para a História do Cinema Brasileiro como obra a ser estudada, debatida, lembrada, reconhecida, está justamente na sua força de exposição dos vários traços de autoritarismo e obscurantismo que ainda se fazem presentes, todos prestes a mostrar os dentes como cães danados do fascismo, lembrando a música de Chico César. Ganhar um Oscar é só mais um detalhe.

[1] https://abraccine.org/2025/02/05/conheca-os-filmes-vencedores-do-premio-abraccine-2024
[2] GOMES, Paulo Emílio Salles. Uma situação colonial?. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[3] AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
[4] https://variety.com/2025/film/awards/international-oscar-film-nominees-2025-reflect-political-turmoil-1236296169/
[5] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq300903.htm
[6] https://www.boitempoeditorial.com.br/blog/2025/02/06/o-cineasta-seus-filmes-e-suas-contradicoes-para-conhecer-e-criticar-walter-salles/?srsltid=AfmBOornvkTSeeRwC23AXAh1HujfcJcZ6Dn2tV041TkQSSpyGM8FqCzX
[7] BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.